A gestão invisível da favela
A imagem é clássica, um executivo numa sala de vidro, rodeado de gráficos, números e KPIs. Ele é a liderança. O responsável. O que toma a decisão. É assim que aprendemos que funciona o mundo corporativo. É assim que ensinam em Harvard, Stanford e nos MBAs que custam mais do que a renda anual de uma família em Paraisópolis.
Antes de seguir, vale uma nota importante. Esta é uma visão que nasce da quebrada, mas dialoga diretamente com os desafios reais de gestão no Brasil. Não é um texto apenas para inspirar, é um texto ancorado em prática. Aqui se fala de escuta ativa e território, mas também de KPI, Business Plan, Churn, LTV, CAC, ROI, NPS e todos os outros indicadores que fazem parte da rotina de qualquer executivo. Porque na quebrada a gente aprendeu que medir, acompanhar e ajustar é tão vital quanto em qualquer conselho ou diretoria. O vocabulário muda, às vezes entra um “tá rendendo?”, um “o fluxo caiu?”, um “esse trampo vira?”, mas a lógica é a mesma, direcionar energia para onde gera resultado de verdade.
Mas eu passei os últimos dezoito anos observando outra lógica.
Na favela, não existe sala de vidro. O líder não está acima, está dentro. E não lidera por ter respostas, mas por saber reunir as respostas que já existem no território. Lidera porque entende o contexto, porque escuta antes de agir e porque reconhece que cada comunidade é um organismo vivo, com suas próprias forças, ritmos e necessidades.
Quando fundei o Jornal Espaço do Povo em 2007, eu não chamava aquilo de gestão. A gente apenas fazia o que parecia natural, ouvir. Mas ouvir de verdade. Escuta ativa, presença nos becos, vielas, ruas e histórias. Foi assim que entendemos que não existe modelo único. O que funciona em Casa Amarela não funciona automaticamente na Cidade de Deus. Uma estratégia que dá resultado no Nordeste de Amaralina pode fracassar na Maré, no Jardim Teresópolis ou no Morro da Cruz. Cada território é um micro-universo, com códigos invisíveis que só aparecem para quem está disposto a se envolver.
Ao ouvir comerciantes, líderes religiosos, mães solo, jovens criadores e trabalhadores, percebíamos algo que nenhum relatório técnico mostraria, cada pessoa trazia um pedaço essencial da solução. O dono do bar, com sua leitura fina da circulação de renda, ajudava a entender a economia local que move o bairro. A mãe que administrava a casa com um salário mínimo dominava, sem saber, princípios de gestão que empresas como Amazon, Xeque Mate, Google ou Bem Bolado estudariam com atenção. A sabedoria estava ali, distribuída, bastava organizar.
A liderança que emergia não era individual. Era coletiva. Uma estrutura onde a hierarquia não separa, apenas organiza.
Em 2012, quando nasceu a Cria Brasil Comunicação, muita gente apostou que o crescimento levaria à corporatização. Que quanto mais sofisticado o trabalho, menos favela ele teria. Mas fizemos o contrário, ampliamos a operação mantendo o território como centro, não como símbolo.
Hoje são mais de 115 projetos realizados ao longo dos últimos treze anos, em um universo de 1.832 favelas no Brasil, com 440 a só em São Paulo. E o nosso modelo continua sustentado por uma premissa simples, mas pouco ensinada nas escolas de negócio, liderar não é conduzir pessoas para o interesse de uma liderança, é conduzir processos para o interesse do território. É permitir que cada pessoa envolvida se reconheça como parte de algo que produz impacto real na própria comunidade.
Isso muda tudo.
Nos últimos anos, acompanhei executivos de grandes empresas, gente talentosa e preparada, que muitas vezes está exausta. Exausta de estruturas pesadas, reuniões que não resolvem, metas que não dialogam com pessoas. Enquanto isso, nas favelas, seguimos fazendo o movimento inverso, conectamos pessoas. E as pessoas movem os números, não o contrário.
Esse é o ponto cego de boa parte da gestão tradicional, ela se distancia do propósito. Fica técnica demais, procedural demais, e perde o elemento que sustenta qualquer sistema humano, significado.
E significado é um ativo poderoso.
Sabe o que faz um jovem de dezoito anos acordar cedo no sábado para participar de um workshop de comunicação? Não é salário. Não é cargo. É a consciência de que o trabalho que ele faz transforma a vida das pessoas que ele ama. Transforma o bairro. Reconfigura narrativas. Ele participa porque o impacto é concreto e local.
Isso é gestão invisível. A gestão que não precisa de apresentações brilhantes para provar valor. O resultado aparece na rua, na vida real, na comunidade.
E, para quem gosta de números, vamos falar deles.
A economia periférica movimenta 300 bilhões de reais por ano no Brasil, segundo o DataFavela 2025. É maior do que o PIB de vários países. É um mercado gigantesco, pulsante e estrategicamente relevante.
O que isso significa? Que há potencial e pouca leitura contextual. Que as marcas querem falar com a periferia usando códigos corporativos que simplesmente não funcionam ali.
É como tentar conversar com a Geração Z usando argumentos da década de 90, pode até acontecer, mas não faz sentido.
A verdade é que a gestão do futuro não vai nascer em uma sala de aula nos Estados Unidos. Vai emergir de territórios que, por décadas, foram vistos apenas como problema, quando na verdade sempre foram laboratório de solução.
Liderança plural, decisão coletiva, adaptabilidade radical, criatividade como ferramenta de sobrevivência, consciência territorial como estratégia.
Isso não é tendência. É prática. A favela já faz isso há muito tempo. O mundo corporativo é que está começando a notar.
E, quando percebe que funciona, busca aprender. Para isso, é preciso alguém que traduza. Que transite entre a realidade do território e a linguagem executiva. Que gere pontes, não muros.
Esse é o meu trabalho aqui, traduzir. Conectar. Mostrar que a próxima grande lição de gestão não será importada, será descoberta. Em Paraisópolis, em Heliópolis, na Maré, em Casa Amarela, na Cidade de Deus ou em qualquer uma das favelas onde atuamos todos os dias.
Porque a gestão está acontecendo. Em silêncio. Com impacto. Com método. Com profundidade.
E, para quem sabe olhar, ela não é apenas eficiente.
É absolutamente sexy.
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